Em nível mundial, observa-se, por um lado, lógicas universais do processo de urbanização no contexto neoliberal e a emergência da sociedade urbana, por outro. Tais lógicas se implantam em realidades sociais nacionais e locais muito diferentes. De modo geral pode-se constatar a existência de duas grandes diferenças de dinâmicas entre a América Latina e a Europa. Particularmente, do ponto de vista da construção dos espaços urbanos, a Amazônia brasileira apresenta características bastante específicas. Uma das mais importantes dessas características é a persitência da coexistência de territórios de grande densidade e de baixa densidade, sem transição intermediária.
Resulta disso então uma vizinhança imediata de espaços dominados pelas atividades urbanas e de espaços dominados pelas atividades rurais. Esta fratura do espaço é bem presente em métropoles urbanas como Belém, em cidades de porte médio como Santarém (300 mil habitantes), ou em cidades menores como Cametá (130 mil habitantes). Portanto, nesse contexto, como em outros, é muito difícil sustentar a separação radical entre metrópoles e cidades de porte médio.
A causa fundamental desse fenômeno único é a água: o rio. Em tal configuração, o rio funciona como uma fronteira e o espaço urbano com ele se depara e não o ultrapassa. Todavia, como muito bem observou o escritor francês Régis Debray, a fronteira é ao mesmo tempo o que separa e o que conecta. Ela é a costura, bem entendida e representada pelas linhas pontilhadas nos mapas.
O rio portanto é fronteira, espacial antes de tudo, radical, brutal. Em Belém, por exemplo, a cidade se estende cada vez mais sobre a margem direita do rio Guamá, interrrompendo-se abruptamente às suas margens. Esta separação radical dos espaços físicos não impede, entretanto, a existência de intercâmbios intensos em nível humano, porque, como afirma Regis Debray, a “fronteira não é um muro” e, em se tratando de um rio, é uma passagem.
Em Belém as interações são intensas, entre as margens da cidade o mundo das ilhas, situado em face. Os dois mundos se interpenetram constantemente produzindo semelhanças impressionantes. Assim, no que concerne às habitações, nas ilhas, estas, sobre palafitas, dão vista para a água; este mesmo tipo de habitação se encontra nas margens urbanas de Belém e de outras cidades da Amazônia.
Neste vasto espaço que engloba tanto as ilhas quanto as margens da cidade, o rio, a água, constitui o eixo organizador de um “sócio-sistema de ilhas e orlas”. Nesta perspectiva o rio é um ator maior desse sócio-sistema, o que se justifica dado o fato de ser a cidade amazônica um espaço que ultrapassa amplamente a zona urbanizada propriamente dita. Assim se explica que, pensar a urbanização nesse contexto, exige integrar em um mesmo movimento as ilhas como não densamente povoadas, as margens densas da cidade e o rio como ator da construção do laço entre esses dois espaços, separados e unidos ao mesmo tempo por ele.
Além disso, o sócio-sistema organizado em torno do rio inventa uma realidade cultural original em uma lógica de hibridação que se manifesta por intercâmbio de objetos urbanos como bacias, utensílios, alimentos da agroindústria, telefones celulares, e assim por diante, ligados a uma vida social, simultaneamente pontual e regular, feita de interações comerciais, de convivialidade e de confronto. As pessoas se encontram, se falam, divertem-se em jogos improvisados onde se aposta dinheiro, disputam-se e se enfrentam. A violência latente está lá sempre pronta a atualizar-se Nesse contexto podem ser apreciados quantitativamente e qualitativamente nos levando em primeiro lugar a desconstruir a representação, muito difundida no imaginário coletivo, segundo a qual os rios na Amazônia constituem em si uma fonte suficiente e satisfatória para a população.
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Philippe Plas é doutor em Sociologia (Université Paris 13) e professor visitante do Núcleo de Meio Ambiente da UFPA.
Publicado na edição de quarta-feira, 4 de maio de 2016, do Jornal O Liberal, caderno Atualidades, pág. 2
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