A Coalizão Ciência e Sociedade, formada por 74 cientistas atuantes no Brasil, se manifesta contra a MP 910 e recomenda que o Congresso Nacional rejeite a MP 910. Conhecida como ‘MP da Grilagem’, a medida torna oficial ocupações ilegais em reservas indígenas e áreas de proteção ambiental.
- Ima Vieira (Museu Paraense Emílio Goeldi)
- Maria Teresa Piedade (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia)
- Helder Queiroz (Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá)
- Joice Ferreira (Embrapa Amazônia Oriental)
- Mercedes Bustamante (Universidade de Brasília)
- Coalizão Ciência e Sociedade
A Medida Provisória n.º 910/2019 (MP 910), conhecida como a “MP da Grilagem”, altera drasticamente as regras sobre regularização fundiária de ocupações em terras públicas federais e está para ser votada a qualquer momento no Congresso Nacional. Ela possibilita a anistia ao crime de invasão de terras públicas praticado entre 2011 e 2018 e permite a titulação de áreas públicas desmatadas ilegalmente nesse período.
A MP 910 altera várias leis: Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União; Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que institui normas para licitações e contratos da administração pública; e Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos.
Como a MP 910 afeta a situação das terras públicas na Amazônia Legal?
Do total de 123 milhões de hectares de terras públicas federais, cerca de 12 milhões foram destinadas para Terras Indígenas (10%), 14 milhões para Unidades de Conservação de Proteção Integral (11%), e outros 14 milhões para Unidades de Conservação de Uso Sustentável (11%).
Os 48% restantes das terras públicas federais foram destinadas para uso agropecuário, sendo 19,5 milhões de hectares (15%) como assentamentos e áreas de uso comunitário, 13 milhões (10%) como áreas privadas destinadas (i.e. tituladas) e cerca de 7 milhões (7%) de imóveis no Programa Terra Legal, parte ainda em processo de análise.
O Relatório científico de Sparovek et al (2020) evidencia que a MP visa à destinação de 43 milhões de hectares de terras federais (34%), dos quais aproximadamente 18 milhões (14%) são áreas privadas autodeclaradas inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e cerca de 25 milhões (20%) em áreas sem indicação de destinação que se encontram fora do CAR.
Este cenário levou a uma corrida em busca de terras na Amazônia por grileiros, especializados em invadir e especular. O problema da grilagem é sabidamente responsável pela maior parte do desmatamento ilegal, pela violência, e pelo clima geral de insegurança na região. Em 2019, as queimadas e o desmatamento na Amazônia atingiram a maior taxa anual dos últimos dez anos e, mesmo na pandemia, o desmatamento continua acelerado. A legalização de invasões na Amazônia pode levar ao desmatamento adicional de até 1,6 milhão de hectares até 2027, caso uma área pública federal de 19,6 milhões de hectares na região seja privatizada.
O Relator da MP 910, Senador Irajá Abreu, publicou um segundo projeto de lei de conversão em 30 de março de 2020, que mantém ou agrava alguns dos problemas do texto inicial, e ainda traz novos problemas. A análise preliminar deste novo relatório feita por pesquisadores do Climate Policy Initiative / Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/ PUC-Rio) identificou que o relator não apenas mantém as principais regras prejudiciais à regularização fundiária, mas recua em alguns avanços que tinham sido feitos no relatório anterior, como também insere matérias de conteúdo estranho ao objeto originário da medida provisória, os chamados contrabandos legislativos.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, em nota técnica afirma, em consonância ao que foi analisado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que, se aprovada, a MP trará danos sociais, ambientais e econômicos.
Qual a relação entre a MP 910, a IN 09/2020 e outras demandas de populações tradicionais?
Há 237 processos de demarcação de Terras Indígenas em curso. Até então, ninguém podia negociar áreas ocupadas ou griladas dentro desses territórios. Em 22 de abril de 2020, a Fundação Nacional do Índio (Funai) mudou as regras e permitiu que essas áreas sejam vendidas, loteadas, desmembradas e invadidas.
A Instrução Normativa (IN) 09/2020 altera o regime de emissão do documento chamado “Declaração de Reconhecimento de Limites”. Até então, o documento tinha a finalidade de fornecer aos proprietários de imóveis rurais a mera certificação de que foram respeitados os limites com os imóveis vizinhos onde vivem indígenas. Agora, a Funai certificará que os limites de imóveis e até mesmo de posses (ocupações sem escritura pública) não incidem apenas no caso de Terras Indígenas homologadas por decreto do presidente da República. Depois, poderão pedir a legalização da invasão no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por intermédio de cadastro autodeclaratório.
Enquanto isso, centenas de comunidades tradicionais brasileiras aguardam o processo de regularização de seus territórios. Por exemplo, cerca de 2,6 mil comunidades já foram reconhecidas como quilombolas, mas apenas 1,7 mil tiveram seus processos de titulação de territórios iniciados ou concluídos.
Em meio a uma pandemia, a MP 910/2019 está para ser votada a qualquer momento no Congresso Nacional!
Não há urgência ou lacuna legal que justifique a edição da MP 910, e uma medida com tais impactos não deveria ser decidida numa situação de emergência com a pandemia que atualmente assola o país. Em pleno recrudescimento do desmatamento, o Poder Legislativo não pode aprovar proposta que legitima a grilagem e o desmatamento ilegal e beneficia grandes produtores rurais em detrimento de agricultores familiares e de populações tradicionais.
Para continuar valendo, a medida provisória tem de ser aprovada no parlamento até 19 de maio. A presidência da Câmara dos Deputados comprometeu-se a só colocá-la em votação se houver consenso entre os líderes de todos os partidos. E até agora não há. Se não for votada no prazo, a medida perde a validade.
Uma campanha nacional foi lançada dia 13 de abril e aponta como solução a busca de alternativas que defendam os interesses nacionais, tragam justiça social e preservem o meio ambiente. Mais investimentos e trabalho devem ser priorizados para fazer valer a lei que já existe hoje (nº 11.952/2009) e dá direito à terra a mais de 190 mil pequenos produtores. A alocação de florestas sem destinação em alguma categoria de floresta pública é, também, essencial para a conservação da Amazônia e o uso sustentável dos recursos da região.
O momento exige seriedade e compromisso do Congresso Nacional com a preservação do patrimônio de todos os brasileiros.
Referências:
https://www.inputbrasil.org/wp-content/uploads/2020/04/NT-Relatorio-sobre-MP-9102019.pdf
http://www.lagesa.org/wp-content/uploads/documents/Sparovek_Rajao %20et%20al _20_Analise%20MP910.pdf
https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/140116
Foto: Mayke Toscano/Gcom-MT
Fonte: http://cienciasociedade.org/a-ameaca-socioambiental-da-mp-910-2019-na-amazonia/